quinta-feira, 29 de outubro de 2009

DIÁRIO ABERTO DE UM PSICÓLOGO

Segue o registro no diário de campo, conforme observação realizada no Hospital de Pronto Socorro:

Interessante que quando entro aqui [Unidade de Queimados], penso naqueles filmes do Vietnam...talvez o cheiro..não...isto não pode...mas parece de guerra, com certeza...tenho medo?...ninguém me olha...não nos olhos...a luz é fraca e o clima é muito pesado...as noites são assim? Ela recém chegou, veio mesmo do SAMU da Restinga. Ela chora muito e nem pode enxugar as lágrimas, está quase toda enfaixada, inclusive as mãos...Um médico tenta escutar, para uma anaminese, mas parecia desconhecer outras possibilidades de apoio naquele momento de desespero. Tenho a impressão de um mal estar em lidar com esta realidade de ter que ouvir mas não saber o que dizer. Sei que é um ótimo profissional, mas ele mesmo além de não saber o que fazer parecia julgar desnecessário qualquer intervenção que não fosse a técnica. Ele me chama. -Esta é pra ti...Ela me olha e chorando (se) pergunta: -Por que eu fiz isto na frente dos meus filhos? Tem 22 anos e 4 filhos, sendo que o último tem poucos dias. A ficha diz que ela “se ateou fogo com álcool, informou uma vizinha”... uma Auxiliar me diz que pode ser agressão do marido pois “ela não diz coisa com coisa”, ou “depressão pós-parto, né?”. Aproximo-me, me apresento...mas ela chora muito mesmo. Pergunto se esta com dor e ela repete: “-Por que eu fiz isto na frente dos meus filhos?”. Vou ficar aqui contigo pra te acalmar...será que tu consegues te acalmar agora...? E ela repete a mesma frase de antes. Digo que vou fazer uma coisa que é boa pra ela...então, coloco as palmas das mãos encaixando bem devagar e suavemente nas solas dos pés. Olho ao redor e, desta vez, todo o posto está me olhando...o que estarão pensando? O médico, que já sabe da minha pesquisa sobre emergências, parece não acreditar no que está vendo...e eu...no atraso nos cuidados dos aspectos emocionais...na quase súplica - e alívio - do médico quando me viu e me passou a paciente...penso quando estive na Finlândia que nos locais de trabalho tem pessoas voluntárias para fazer massagem e polaridade em quem está precisando...ela parou de chorar e eu sinto que agora me olham de outra forma...putz...quanta coisa todo mundo aqui tem pra aprender sobre a importância das coisas reichianas na saúde...que angústia...isto nunca vai mudar...estas pessoas nunca vão abrir um espaço nas suas vidas para quebrar os seus preconceitos...enquanto isto os pacientes continuam solitários...como eu neste posto? ...tudo é muito duro por aqui..tem que ser assim? (BRUCK, 1989, p. 131).

Fonte
http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=726

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